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O problema de os outros demónios é que a escrita pode ser, a seco, indigesta. E as pessoas podem pensar que não concordam comigo, ou, pior ainda, que concordam comigo, que eu não estou bem, ou que estou bem demais, e isso, na escrita, é uma verdade tão verdadeira como a possibilidade de eu me vir a tornar astronauta. Tudo o que se escreve é um lado de nós que nunca, nunca, somos nós. O que escrevemos é sempre aquilo que queremos que os outros leiam, porque a escrita tem essa magia de ser sempre para alguém.
Muitas vezes, vezes demais, releio o que escrevi e não me parece meu. Uma palavra, num instante, e toda ela é toda outra, quando ultrapassa a fronteira de escrita a lida.
Relatórios e documentos infindáveis para elaborar e, na cabeça, uma lista de mil coisas boas que eu poderia estar a fazer!
Às vezes, muitas vezes, até eu tenho dificuldade em ser razoável... 960 fotografias à espera de serem arrumadinhas no seu sítio, no seu momento e eu às voltas com o computador !
Quando os demónios das palavras são muitos, o desassossego é imenso, escrevo, e não, não me recomendo.
O pessoal gosta de falar, gosta de dizer alguma coisa, ainda mais se alguma coisa for dizer mal, reclamar, barafustar. O pessoal gosta de dar a sua opinião, como se a sua opinião fosse, realmente, alguma coisa que importasse. O pessoal gosta de dizer que a culpa é da crise e a crise passou a ser A desculpa. Chegas atrasado ao emprego, a culpa é da crise; andas nervoso com as pessoas, a culpa é da crise; os miúdos estão a ficar mal educados, a culpa é da crise; passas horas a ver os programas fritadores de cérebros da televisão, a culpa é da crise... Enfim, o bode expiatório perfeito, a crise...
Sou só uma professorazita, logo, funcionária pública, logo uma das causadora da crise, logo tenho de ser eu a pagá-la.
Sou só uma funcionária pública, sem horário das nove às cinco, logo sou professora, logo estou meio ano de férias, pois todos sabem que quando não há aulas, os professores estão de férias...
Sou só uma professorazita, logo cerca de 500 euros do meu salário são para pagar um subsídio de desemprego, provavelmente de uma das pessoas que costuma ser chamada para trabalhar na minha escola e que não compreende como a podem fazer trabalhar se ela está muito melhor em casa e ganha o mesmo(ó stora, até ganho mais, porque não gasto dinheiro nos transportes), a culpa só pode ser da crise! Ou então os meus 500 euros servem para pagar algum subsídio do Zé que fica em casa a fazer filhos e que vem à escola de táxi, porque o autocarro é muito cedo (ó stora, tinha de esperar uma hora!- o que é imenso, sabendo-se que não tem emprego), e não compreende porque é que a assistente social lhe deu uma máquina de café que nem sequer é da nespresso, a culpa só pode ser da crise...
Sou só uma professorazeca, que andei 9 anos a ser colocada a 550 km do sítio a que podia chamar casa, que fiz 320 km por dia para vir dormir ao sítio a que podia chamar casa. Como posso eu compreender que as pessoas estejam a ser obrigadas a emigrar para ganhar a vida?...
Sou só uma professorazita que tive de deixar a minha filhota, bebé, em casa, doente, fazer 200 km, duas vezes por semana, depois do trabalho, para poder arranjar um emprego mais estável, ainda que agora me tirem 500 euros para dar aos que ficaram em casa com os seus bebés, nos seus sofás, a ver os seus programas fritadores de cérebros da televisão. Como posso eu compreender que as pessoas sejam obrigadas a arranjar novos empregos?...
Sou só uma professorazita, funcionária pública, que tenho mais é de pagar a crise.
Sou muito solidária com os que se levantam, os que correm mundo, os que vão à guerra, mesmo em tempos de crise! Lamento que haja quem não tenha que comer e todos os dias tenha de recontar o dinheiro, para pagar o almoço dos filhos;
mas para os outros, os do sofá, a quem eu estou a pagar a conta da luz, enquanto vêem os programas fritadores de cérebro, para os outros, eu tenho um conselho: logo à noite, quando não tiverem o que comer, comam telemóveis!!
Para ler:
"O que seria a França? A Adelaide sabia três coisas do país para onde se dirigia: na França, as pessoas tinham máquinas que faziam a lida da casa, que varriam o chão, que lavavam a loiça e a roupa, braços de ferro; na França, as pessoas só andavam de automóvel, mesmo para ir à padaria; na França, as pessoas comiam carne de cavalo cozida. Esta última informação era a que mais espécie lhe fazia, tinha pena dos bichos. também já tinha ouvido falar da cidade de Paris, conhecia o nome, e também já sabia que os franceses falavam estrangeiro. Como iria entender-se num lugar em que toda a gente falava estrangeiro e comia cavalo? Durante as horas da viagem, coberta por lona, a fugir com o rosto aos olhares embaciados dos homens, a Adelaide apoquentava-se (...)"
Livro, José Luís Peixoto
Gosto de José Luís Peixoto, mas este livro, Livro, hipnotizou-me até mais ou menos a meio e, depois, o narrador começa a interagir com o leitor de uma forma um pouco forçada, e foi perdendo o encanto .
Respeito os leitores que não fazem dobras nos livros, para não os estragarem; os leitores que não riscam os livros, para não os estragarem; os leitores que não dobram os livros, para não os estragarem; os leitores que não levam os livros a passear para lá da beira da cama, da estante do escritório, para não os estragarem. Respeito até os que não lêem os livros, para não os estragarem.
Já eu, estrago todos os meus livros: não os sublinho, quando não tenho canetas à mão; dobro-os em todas as páginas que me marcam, retribuindo-lhes a marcação; levo-os e espalho-os pela minha vida... E depois, mais dia menos dia, tropeço neste ou naquele, e leio partes das páginas que fui dobrando, assinalando, marcando. E eles, os livros, retribuem-me sempre as minhas visitas fugidias. Respondem-me. Gritam-me.
"As coisas que parecem ter passado são as que nunca acabam de passar"
A Caverna, Saramago
"Não tenho tempo para ler" - dizem-me alguns com os olhos infelizes,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que eu tenho tempo para ler.
Quando me dizem: "Não tenho tempo para ler"
e eu olho-os, e nos meus olhos lassos também há ironias e cansaços quando lhes digo "compreendo-te bem". Pois que eu sou a primeira a saber o que é não ter tempo. Não tenho tempo para jogos no facebook, não tenho tempo para ver telenovelas nem casas de segredos, não tenho tempo sequer para ter tempo para fazer uma manicure que leve mais do que 10 minutos... pois, sei bem o que é não ter tempo...
Tempo para comer é outra coisa. Sempre acabamos por comer. Podemos até saltar uma refeição, passar só com uma sandes ou um iogurte, é certo, mas sempre comemos. Tempos há, com menos tempo, é certo, em que leio um livrinho-sandes, ou passo os olhos por duas páginas de uma maçã, mas sempre acabo por ler. Assim, se fazem os meus tempos para ler, como as refeições: ora de repasto demorado, desde entradas a café e aperitivo; ora de uma sandocas de pronto-a-comer.
É a magia do tempo, um tempo que se desdobra em tempos, que vamos criando à medida das nossas vontades.
Tenho esta fantasia de organizar uma jantarada com uma dezena de pessoas que gostaria mesmo de conhecer. Ficávamos ali a jantar pela noite fora, a petiscar e a beber uns copos, e conversar, conversar, conversar, coisas sem importância com a importância toda do mundo.
Para jantar, e a encabeçar a lista, Ricardo Araújo Pereia, porque é genial, e, entre genial e génio, confunde-me as ideias; Rui Veloso, pela música de sempre e para todos, e , entre o ar boémio e de bon vivant, há uma guitarra para animar a noite; Pedro Boucherie Mendes, pela ironia, a arma mais mordaz-eficaz dos inteligentes com pretensões a ser diferente; Cristiano Ronaldo, porque só quem não o conhece pode não gostar dele, e é grande o rapaz; Valter Hugo Mãe, porque Saramago morreu cedo demais, e, contrariamente ao que se apregoa, os amores não são eternos, são efémeros e buscam substitutos ao virar da esquina.
Vou a meio da minha lista. Políticos não entram, padres também não. Não sei explicar bem porquê, mas vejo-os mais ou menos ao mesmo nível.
Mulheres, não as encontro. Divido-me entre a frustante convicção de que não há mulheres com quem valha a pena jantar ou a hipótese de eu mesma estar embebida da mais pura inveja em relação aos outros elementos do meu género, o que, admita-se, só viria confirmar a minha condição feminina.
Bem, lembrei-me agora que, em desespero de causa e para que a causa não desepere, pois tanto homem junto também não pode ser bom, era capaz de convidar a Erica Fontes. Sempre garantia que os rapazes tivessem alguma razão para aceitar o convite...
Para ler, Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro.
A leitora é egoísta. A leitora é antissocial. A leitora não existe sem um toque de autismo, de redoma em volta de si e do seu livro.
Acima de tudo, nos livros, o prazer de estar a sós comigo.
Desconfio de pessoas que dizem nunca me arrependo de nada.
A sério??!! Eu estou sempre a arrepender-me...
Quero encher os olhos de mar. Hoje, longe da minha montanha, vou, assim, sozinha, procurar-me no mar, o meu recomeço do recomeço...
Deixo para trás os princípios dos anos aprisionada pelo calor dos meus montes, e busco a brisa que estremece, busco o olhar a transbordar de horizonte.
2013 far-se-á destes dias outros.
Os livros serão, hoje, Sophia de Mello Breyner Andresen. Versos. Marés.
A memória atraiçoa-me, mas tenho quase, quase, a certeza de que algures pelos finais dos anos 80 e princípios de 90, em que devorei centenas de almanaques "patinhas", comprados sempre por uma colega da escola, li, uma vez, um especial que oferecia ao leitor a hipótese de ir escolhendo a continuação da história. Era tipo um "você decide", mas sucessivo. Por exemplo, o tio Patinhas tropeça numa moeda, o que acontece a seguir? Apanha-a e esconde-a no bolso (continua a ler na página 10). Apanha-a e investe numa promoção de guarda-chuvas (continua a ler na página 20). E a história era, afinal, duas histórias que se faziam à medida das nossas vontades. E, o melhor de tudo era que, assim que terminavas a leitura da tua primeira versão, voltavas atrás para ler as outras hipóteses que tinhas saltado e acabavas por ter uma outra história...
Tinha um lado mau, é certo. O leitor é preguiçoso, gosta que lhe escolham os finais, que decidam por si que destino vai ter esta ou aquela personagem, mas a possibilidade de voltar atrás e fazer tudo de forma diferente tinha um gosto incomparável. Melhor do que escolher investir em guarda-chuvas era saber que, no minuto seguinte, uma tempestade inesperada levava o rico tio Patinhas a um lucro de mais de 1000%...
Melhor do que poder voltar atrás e escolher outro caminho era saber aonde esse caminho nos levaria...
Fora de páginas, isso é absolutamente impossível, por isso não gosto de escolhas. Não sei se já o disse, sou balança, não gosto de ter de escolher. Quero que me mostrem as coisas e digam que são assim. Ponto final. Depois, vou criticar, apreciar, mudar, sugerir, gostar, não gostar, mas escolher, não. Não quero. Não se faz isso a uma balança. Por isso sou leitora compulsiva, não quero decidir nada, quero que um qualquer autor decida por mim, tudo. Quero só preguiçar na leitura e, depois, criticar, apreciar, mudar, sugerir, gostar, não gostar.
Assim sendo, e porque este post já ultrapassou há umas vinte linhas atrás o limite razoável de um post grande demais, sei lá se na passagem de ano é melhor ficar ou ir embora, se é melhor começar o ano sozinha ou acompanhada, sei lá se quero dormir toda a noite ou dançar toda a noite… quem me dera poder saltar páginas, e conhecer todos os finais possíveis para as minhas escolhas.
Não podendo, dêem-me só um livro para preguiçar. Até pode ser "tio Patinhas"...