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A mulher que se senta em frente ao computador acabou de passar a ferro a roupa que estendeu ontem, quando acabou de apanhar a roupa que pôs a secar antes de ontem, quando acabou de levantar a mesa, quando acabou de deitar os filhos, quando acabou de preparar as mochilas do dia seguinte, quando chegou do trabalho, depois de passar pelo sapateiro e pela padaria e pela farmácia, antes de voltar ao trabalho para resolver problemas que outros criaram, depois de mais uma reunião de papéis, quando acabaram as discussões sobre pais ausentes, mesmo logo a seguir ao telefonema a informar da febre do filho, dois dias depois de uma crise inesperada no hospital, assim que se sentou para um jantar apressado.
E como a mulher que se senta em frente ao computador ainda tem de ir passar a ferro a roupa que estendeu de manhã, deixa-vos um poema:
A mulher que passa
Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontravas se te perdias?
Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!
No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!
Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como cortiça
E tem raízes como a fumaça.
Vinicius de Moraes
A magia acontece quando as palavras ganham vida e se concretizam. Um mimo para os leitores que por aqui vagueiam, entre demónios.
"Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir até de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possivel
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar; que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros."
Nuno Júdice
in Poesia Reunida
A lembrar os meus outros amores. Tantos, para lá de Pessoa. E a rasar, quase sempre, a grandeza do "meu" poeta.
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
Fernando Pessoa morreu a 30 de novembro de 1935.
Para assinalar a data, o poeta:
"Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus.
Poemas Inconjuntos, Fernando Pessoa/Alberto Caeiro
No dia de aniversário da sua morte, por "cólica hepática", associada a cirrose hepática, certamente não por beber demasiada água, apetece-me comentar a nova publicidade ao Licor Beirão, em que se faz um jogo com os heterónimos de Pessoa. Engraçado, como, aliás, a maior parte das publicidades do Licor Beirão. Mas ontem, quando vi este spot, pensei imediatamente "e o licor beirão é feito de absinto??". É que Fernando Pessoa, para mim, combina é com absinto... Então fui procurar o que bebia Pesssoa e os seus outros eus:
"Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo..."
Passagem das Horas, Álvaro de Campos
"Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala. O mais é nada."
Tão cedo passa tudo, Ricardo reis
"Dá-me mais vinho porque a vida é nada",
Há doenças piores que as doenças, Fernando Pessoa
Enfim, não lhe fica mal o Licor Beirão...